
A Difícil Arte de Dominar Ventos
"O Ceará, terra misteriosa, árida e violenta, deve ser evitado."
Era essa a opinião do Padre Luiz Figueira em agosto de 1609, quando analisou, a pedido das autoridades portuguesas, as possíveis dificuldades que uma expedição encontraria na rota terrestre entre o Rio Grande do Norte e o Maranhão.
O experiente Sacerdote apresentava 6 razões que, a seu ver, seriam mais do que suficientes para que tal travessia fosse evitada. Entre elas, a distância maior que 300 léguas de terras estéreis povoadas de índios tapuias que, além de serem “... Tantos que não tem conta”, não costumavam poupar a vida de ninguém "... Por coisa alguma", tampouco "... Admitiam pazes".
Outro problema, segundo o padre, dizia respeito à água, "... Que só se bebe de covas que se fazem junto ao mar", o que a tornava demasiadamente salgada e fazedora de "muitos males."
Sobre a travessia dos rios - mais uma dificuldade a ser enfrentada pela possível expedição - Padre Luiz Figueira advertia tratar-se do "... Maior perigo", já que os tapuias tinham por prática espreitar os que tentavam passar para a margem oposta e,"... Passando alguns, ou dão neles ou nos que ficam na outra banda".
Para arrematar seu discurso fatídico e desencorajar de vez os que ainda ousassem acalentar aquela infeliz idéia, o emérito sacerdote sentenciava: "dado o caso de que a todos esses perigos se possa escapar, não se escapará da fome".
Fim das esperanças? Não.
Sempre existiam aqueles que, a despeito da aterradora narrativa do Padre Figueira, precisavam a todo custo ir do Rio Grande do Norte ao Maranhão. A esses, caso pudessem optar, restava uma alternativa: a travessia marítima ao longo da costa cearense, já conhecida, por conta dos fortes ventos que açoitavam o litoral, como a "terra dos mares bravios."
Vejamos o que o Padre Figueira tinha a dizer sobre os tais ventos: "... São todos de popa", o que tornava "... Mais fácil ir às ilhas ou ao reino e de lá vir, de que é vir do Maranhão em direitura".
Como se pode notar, Padre Luiz Figueira tinha ótimos motivos para pedir aos seus contemporâneos que evitassem as misteriosas terras do Ceará...
No entanto, havia exagero nas histórias daquele sacerdote?
Quanto aos ventos, talvez não.
Vejamos um fato: alguns poucos anos após o relato dantesco do Padre Figueira, Martim Soares Moreno, o conquistador e "fundador" do Ceará - que se vangloriava por ter degolado mais de duzentos corsários franceses e espanhóis em terras cearenses – encontrando-se muito doente, teve que embarcar-se como pôde com destino à Europa, em busca da cura. Os ventos da nossa costa, no entanto, acabaram por conduzi-lo às Antilhas.
Caindo nas mãos de uma esquadra espanhola, foi enviado para o velho continente a bordo de uma embarcação igualmente velha, sem vela e sem aparelhos de localização náutica.
Quase à deriva na imensidão do Atlântico, tendendo ao naufrágio, o moribundo barco foi encontrado e atacado por corsários franceses. Mesmo debilitado, Martim Soares participou da feroz batalha. Seu saldo pessoal, no entanto, não foi dos melhores: sofreu cerca de 23 lesões e teve uma das mãos decepadas.
Para piorar a já desesperadora situação, os corsários franceses reconheceram Martim Soares como o responsável pela degola de inúmeros compatriotas (aquele feito do qual o nobre herói costumava se vangloriar) e o condenaram à morte, fato que só não se concretizou porque o desesperado português prometeu aos raptores o pagamento de vultosa quantia pelo seu resgate.
Já livre da fístula e dos corsários, mas com as finanças seriamente abaladas, o agora maneta Martim Soares Moreno ainda retornaria ao Ceará e aqui viveria por mais de uma década, cultivando o desejo por glórias e riquezas, sem saber que novos ventos - dessa vez vindos da Holanda - acabariam por levá-lo definitivamente para outras terras.
4 comentários:
Hoje navegamos num mar virtual, não menos revolto... E se os ventos vierem de popa, que estejam nossas velas pandas... Parabéns, amigo, pela iniciativa de repensar nossa história!
Obrigado pelas palavras, caro amigo.
Apesar da imprecisão dos mares (reais ou virtuais), repensar, no nosso caso, ainda é preciso.
Abraço.
Informações muito interessantes. Não sabia que Martim Soares Moreno era um personagem assim surrelista. Se não me engano foi Alejo Carpentier quem disse que o surrealismo, na Europa, era uma atutude intelectual. Aqui, é o nosso dia a dia!
Abraços.
Concordo com você, Paulo.
São tantos os fatos surreais (hoje, talvez, mais do que ontem) que, por vezes, parecemos habitar não um país, mas uma pintura de Dalí.
Abraços.
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