O Senhor de Trapiá


Um amigo chamou minha atenção para o conto Come Gato, do cearense Caio Porfírio Carneiro. Li e gostei. Então, de uma levada só, li todos os outros contos do livro, intitulado Trapiá. Ao término da leitura, fiquei com a nítida impressão de que aquele livro, além de grande literatura, guardava vários filmes interessantes.

Sem conseguir tirar as histórias/filmes de Trapiá da cabeça, resolvi procurar uma forma de me comunicar com o autor. Após algumas ligações, um número de telefone estava diante de mim. Titubiei um pouco. E se não fosse bem recebido?

Lembrei de uma frase de Virgílio: "O medo acrescentou-lhe asas aos pés." Resolvi ligar.

Do outro lado da linha – em São Paulo – atendeu um Caio Porfírio que parecia conhecer-me de longa data, tal a gentileza no trato e a delicadeza no ouvir.

A conversa foi surpreendentemente espontânea e fluída. Ao final, estava selado o acordo para tentar transpor para as telas algumas daquelas histórias inquietantes.

Ontem eu o conheci pessoalmente. Depois de quase três horas de boa e rica conversa – da qual também participou o amigo que me indicou o conto que deu origem a tudo, Marcley de Aquino – saí com a certeza de que tinha estado diante de um verdadeiro e talentoso artista, um dos maiores que o Ceará já produziu.

Do alto dos seus 81 anos de idade, Caio Porfírio Carneiro continua estimulado e inventivo, apreendendo e recompondo a trajetória das coisas ao longo do caminho. Sinal disso foi o presente que me deu: seu mais novo livro, O Copo Azul.

"Um livro de micro-contos", explicou. "E por quê O Copo Azul?" "Não sei. É apenas o título de um dos contos. Gostei do título. Gostei do copo. E sempre gostei do azul. Fazer o quê?"

Abaixo, um pouco do conteúdo desse Copo Azul do Senhor de Trapiá.

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A Travessia*

_ É apenas um pulo para atravessar este riacho. Sem medo. Uma corridinha, um pequeno impulso, e pronto. Então você me espera que será a minha vez. Combinado? Vá. Isso. Sandálias na mão, claro. Do outro lado você lava os pés. Vamos lá. Dê uma corridinha. Isso. Vá. Vá. Pule. Beleza. Viu como foi fácil? Agora lave os pés e calce as sandálias. Não precisa enxugar. O calor enxuga rápido. Pronto. Agora se afaste um pouco que vai ser a minha vez. Vou atravessar.

Ela deu-lhe as costas, saiu andando, sem se virar:
_ Você não precisa atravessar. Nunca mais.
E perdeu-se na vereda.

* Conto do Livro O Copo Azul, de Caio Porfírio Carneiro

2 comentários:

Marcley de Aquino disse...

Das muitas histórias de vida e de arte que Caio Porfírio Carneiro nos contou neste inesquecível encontro, uma chamou a atenção: a da pneumonia que supostamente fizera dele um escritor. Não fosse tão avassaladora doença nossa conversa com o artista não teria existido? Creio que sim, apenas com uma história a menos...

Duarte Dias disse...

Esse raciocício - o do destino irremediável - leva a Cervantes: "O que o céu determinou que sucedesse, não há diligência nem sabedoria humana que possa prevenir."

Existe um outro pensar sobre isso, como Mário Quintana escreveu: "O Destino é o acaso atacado de mania de grandeza."

Crenças à parte, o que importa é que o artista existe e sua obra respira, mesmo com um pulmão danificado. E convenhamos: como respira bem!

Abraços!